Parcerias institucionais para o desenvolvimento inclusivo de Moçambique
– António Souto, economista e Presidente da AMOMIF
- Introdução
Esta nota tem como objectivo principal argumentar a favor de um modelo de intervenção que assegure maior eficácia e eficiência na aplicação de recursos para a expansão de serviços financeiros que impactem positivamente na Inclusão Financeira.
Ao decidirmos juntar-nos para debater os desafios da digitalização no âmbito das microfinanças fomos inspirados por eventos que estão neste momento a decorrer a nível internacional onde o financiamento ao desenvolvimento são temas centrais. Dentro de dias – a 22 e 23 de Setembro – realiza-se em Nova Yorque a “Cimeira do Futuro” e em Julho de 2025 realiza-se em Espanha a 4ª Conferência internacional sobre o Financiamento do Desenvolvimento.
Nestes eventos estão e serão abordadas questões novas e emergentes. Há um reconhecimento internacional de que alguns dos objectivos de desenvolvimento sustentáveis (ODS) não estão a ser alcançados. O peso do serviço da dívida e o questionamento sobre algumas práticas e políticas na alocação e gestão de recursos recomendam importantes reformas, incluindo na arquitetura financeira internacional.
As avaliações sobre os desafios na implementação dos ODS, destacam a importância do acesso ampliado a serviços financeiros em cinco dos seus 17 objetivos. A inclusão financeira é vista como um meio crucial para alcançar vários objetivos, designadamente a erradicação da pobreza (ODS 1), Fome Zero (ODS 2), Saúde e Bem-Estar (ODS 3), Educação de Qualidade (ODS 4) e Igualdade de Género (ODS 5).
Em janeiro deste ano, o governador do Banco de Moçambique disse publicamente: “O País tem problemas sérios de inclusão financeira. Não há desenvolvimento inclusivo e equilibrado sem lidar com questões de inclusão financeira”. Outras instituições, incluindo entidades como o Banco Africano de Desenvolvimento têm declarações similares nos seus mais recentes relatórios.
Estamos, pois, perante alertas que clamam por medidas urgentes no âmbito da inclusão financeira.
2. A oportunidade de um alerta universal
A reforma da arquitetura financeira internacional é um tema que nos diz muito respeito, assim como, entre outros, o tema dos novos desafios e oportunidades no financiamento do desenvolvimento. Esta 4ª conferência mundial visa apoiar reformas do sistema financeiro internacional para o tornar mais inclusivo e eficaz. Nós, aqui em Moçambique, um dos países com maiores dificuldades e na realização dos ODS não podemos ficar apenas como expectadores.
Os debates em torno da reforma da arquitetura financeira internacional são importantes e dizem-nos directamente respeito. Recordemo-nos que entre 2000 e 2014, Moçambique beneficiou do alívio da dívida através da Iniciativa para os Países Pobres Muito Endividados (HIPC) e da Iniciativa de Alívio da Dívida Multilateral (MDRI). No total, Moçambique teve aproximadamente US$ 6,4 mil milhões de sua dívida externa cancelada.
Hoje, Moçambique está de novo altamente endividado. A dívida pública total de Moçambique em 31 de dezembro de 2023 foi de aproximadamente 15,2 mil milhões de dólares. Este valor representa um aumento de 5,2% em relação ao ano anterior (2022) e corresponde a cerca de 73% do Produto Interno Bruto (PIB) do país. A taxa de juro média desta dívida é de aproximadamente 6,5%.
Numa visão mais ampla anotamos que em 31 de dezembro de 2013, a dívida pública total de Moçambique era de aproximadamente 8,97 mil milhões de dólares americanos. Em 10 anos a dívida publica total cresceu 70%.
O aumento no endividamento público ocorrido em 2023 foi acompanhado por uma redução nas alocações efectivas para sectores prioritários como saúde, educação, agricultura e desenvolvimento rural. As despesas de funcionamento estiveram 7.9% acima do previsto.
Para o propósito desta nota é útil um outro indicador. Em 2013, a taxa de pobreza em Moçambique era de aproximadamente 46,1%. Em 2023, a taxa de pobreza aumentou significativamente, atingindo cerca de 62,8%. Em termos absolutos, o número de pessoas vivendo em pobreza aumentou em cerca de 11 milhões em 2013 para aproximadamente 18,9 milhões em 2023.
Esses dados refletem um aumento substancial na pobreza ao longo da última década, indicando desafios econômicos e sociais significativos para o país.
Fomos recentemente informados que o Governo aprovou uma Estratégia Nacional de Desenvolvimento Económico (ENDE) para o período 2025 a 2044. E para implementar essa estratégia estima-se uma necessidade de um valor superior a USD 260 mil milhões. Incluindo infraestruturas, gestão de capital humano, segurança e outros.
Perante este desafio somos assaltados por duas questões incontornáveis:
O endividamento público é um instrumento comum e universal. Mas, no caso de Moçambique como tem sido gerido?
O que devemos e podemos fazer para que nas próximas décadas o indispensável endividamento seja um factor de desenvolvimento inclusivo e sustentável?
3. Inclusão financeira ou desenvolvimento financeiro?
Estes questionamentos não são restritos a Moçambique. A África subsaariana tem cerca de 400 milhões de pobres (- 1,9 USD/dia) sendo Moçambique um dos 10 países mais pobres.
Por isso, os debates actualmente em curso na preparação da 4ª Cimeira Internacional sobre o Financiamento ao Desenvolvimento tem sido muito abrangente e uma fonte para aprofundar o nosso conhecimento sob os problemas e os caminhos e soluções para os ultrapassar.
Felizmente, em Moçambique e por iniciativa do BdM que tem convidado a AMOMIF a participar, tem-se desenvolvido o conhecimento e conceitos sobre o papel da inclusão financeira.
Para um melhor enquadramento deste debate recorro-me ao que disse o economista Carlos Lopes no seu livro recente sobre Mudança Estrutural em África: “Um dos aspectos mais prementes (de África) é o aproveitamento da energia e do talento das suas gentes, em particular a sua juventude e as mulheres. É urgente ainda preencher o fosso crescente das desigualdades e reduzir a pobreza e o desemprego. Estes desafios minam o potencial produtivo de continente”. E, outros especialistas acrescentam que esse fosso só pode ser superado e os talentos libertados se se promover a inclusão financeira.
Mas, primeiro é preciso tornar claro o que se entende por inclusão financeira.
Uma definição útil de inclusão financeira (IF) é que “[a inclusão financeira envolve] ampliar o acesso, a disponibilidade e melhorar o uso de serviços financeiros formais por todos os segmentos da população” (Sarma, 2008). Como a IF é um conceito multifacetado, as definições preferidas podem variar, mas esta definição capta de forma concisa a sua essência. Os elementos-chave desta definição são, em primeiro lugar e acima de tudo, o facto de a inclusão financeira implicar o aumento dos níveis de acesso e utilização do sector financeiro por parte dos indivíduos.
A inclusão financeira ajuda a suavizar os padrões de consumo, planear melhor os gastos, atender riscos relacionados com a saúde e realizar investimentos em educação e empreendimentos produtivos. Isso é essencial para promover o desenvolvimento sustentável e reduzir a pobreza.
Estamos a falar de serviços financeiros formais, na medida em que um elemento-chave da inclusão financeira é apoiar indivíduos mais pobres e marginalizados a afastarem-se da dependência de acordos de serviços financeiros informais e, muitas vezes, predatórios. Nesse sentido a AMOMIF tem motivado parcerias para que o sector das microfinanças, em particular os seus membros, participem na formalização da economia.
Na medida em que existem também alguns aspetos positivos do financiamento informal, como a alavancagem do conhecimento local para reduzir os requisitos de garantias (Manig, 1990) ou os ganhos de interação social com a participação em clubes de poupança (ASCAS ou Roscas) (Anderson ou Baland, 2002), as intervenções de inclusão financeira também podem procurar incorporá-los em produtos e serviços financeiros formais, de modo a melhorar o seu apelo e, por extensão, sua amplitude de uso.
Portanto, a inclusão financeira difere do conceito de desenvolvimento financeiro, onde os setores financeiros são avaliados de acordo com seu tamanho (Hannig & Jansen, 2010; Lensink et al., 2022), tal como o volume relativo de empréstimos em dívida ou depósitos por conta. Um setor financeiro deve ser primeiramente avaliado de acordo com o seu grau de inclusão a nível individual.
Embora se tenha alcançado um amplo consenso sobre a relevância e papel da inclusão financeira, prevalecem, porém, importantes obstáculos e alguns desentendimentos sobre como a promover.
4. Microfinanças e Digitalização (MFI&FinTech)
4.1. Sobre Microfinanças
As Microfinanças são uma parte do sistema financeiro que envolve a oferta de serviços financeiros, como empréstimos, poupanças e microseguros, para populações de baixa renda que não têm acesso aos bancos tradicionais.
O projecto de consolidação da AMOMIF é baseado em constatações consensuais de que as microfinanças desempenham um papel crucial na melhoria dos sistemas financeiros, tornando-os mais inclusivos. Esse papel realiza-se de várias maneiras:
Inclusão Financeira: As microfinanças promovem a inclusão financeira, permitindo que mais pessoas participem da economia formal. Isso é particularmente importante para mulheres e grupos marginalizados, que muitas vezes enfrentam barreiras significativas para aceder a serviços financeiros tradicionais.
Acesso ao Crédito: Muitas pequenas empresas e empreendedores informais não têm acesso ao crédito tradicional devido à falta de garantias reais. As instituições de microfinanças oferecem empréstimos acessíveis, permitindo que esses negócios obtenham o capital necessário para crescer e se formalizar.
Educação Financeira: Além de fornecer crédito, muitas instituições de microfinanças oferecem programas de educação financeira. Isso ajuda os empreendedores a gerir melhor seus negócios, entender a importância da formalização e cumprir com as obrigações fiscais e regulatórias.
Redução da Pobreza: Ao apoiar o crescimento de micronegócios, as IMFs ajudam a reduzir a pobreza e a melhorar a qualidade de vida. Negócios formalizados têm maior probabilidade de crescer, criar empregos e contribuir para a economia local.
Fortalecimento das Comunidades: As microfinanças podem fortalecer as comunidades ao apoiar negócios locais. Isso cria um ciclo virtuoso de desenvolvimento econômico, onde os lucros são reinvestidos na comunidade, promovendo um crescimento sustentável.
4.2. Benefícios da Digitalização nas Microfinanças
A integração de tecnologias digitais nas microfinanças tem potencial para ampliar o acesso a serviços financeiros, devido à incorporação de tecnologias digitais em processos e serviços financeiros. Esta integração tem vantagens como:
Acesso Ampliado: Plataformas digitais permitem que serviços financeiros alcancem áreas remotas e populações marginalizadas.
Redução de Custos: A automação de processos reduz custos operacionais, tornando os serviços mais acessíveis.
Eficiência e Transparência: Tecnologias como blockchain podem aumentar a transparência e a segurança das transações financeiras.
Em suma, a integração da digitalização nas microfinanças tem o potencial de transformar economias, promover a inclusão financeira e gerar empregos.
4.3. Constrangimentos da parceria Microfinanças&Fintechs
A AMOMIF tem como linha de desenvolvimento estratégico promover a expansão de uma rede de IMFs capazes de oferecerem serviços financeiros digitalizados. Contudo temos de superar alguns obstáculos, com destaque para:
Regulamentação e Supervisão:
Ambiente regulatório complexo: As IMFs operam em um ambiente regulatório dinâmico, onde as leis e regulamentações são rígidas e ultrapassadas face às mudanças de conjuntura. A conformidade com essas regulamentações pode ser onerosa e complexa.
Supervisão rigorosa ou inadequada para pequenas instituições: A necessidade de cumprir com requisitos de supervisão pode limitar a flexibilidade operacional das IMFs e aumentar os custos administrativos.
Acesso ao Financiamento:
Capital limitado: Muitas IMFs enfrentam dificuldades para aceder a capital necessário à expansão das suas operações. A falta de instrumentos de refinanciamento permanentes restringe a sua capacidade de oferecer mais serviços.
Custo do capital: O custo elevado do capital tem sido um obstáculo significativo, especialmente para IMFs que atendem a populações de baixa renda.
Infraestrutura e Tecnologia:
Infraestrutura inadequada: A falta de infraestrutura adequada, especialmente em áreas rurais, limita a capacidade das IMFs de alcançar clientes potenciais.
Tecnologia: A adoção de novas tecnologias é um desafio devido aos altos custos e à necessidade de treinamento especializado.
Capacitação e Gestão:
Falta de capacitação: A falta de profissionais qualificados e treinados tem limitado a eficiência e a eficácia das IMFs.
Gestão ineficaz: A gestão inadequada tem levado a problemas operacionais e financeiros, afetando a sustentabilidade das IMFs.
Educação financeira: A falta de educação financeira entre os clientes limita a procura por serviços de microfinanças formais.
Esses desafios exigem uma abordagem integrada que inclua reformas regulatórias, investimentos em infraestrutura e tecnologia, programas de capacitação e educação financeira.
Contudo, a educação financeira tem mais sucesso se for feita pelas próprias IMFs e não por consultores que não vivem o dia a dia da gestão de carteiras de crédito, como, erradamente tem sido praticado em alguns projectos.
5. Rede de parcerias e Plataforma F4SD
Face aos desafios que se colocam para que as microfinanças possam preencher melhor a sua função na inclusão financeira concluiu-se ser necessário trabalhar através de uma larga rede de parcerias institucionais.
Nesse sentido e em parceria com a Gapi foi lançada a Plataforma Financiamento para o Desenvolvimento Sustentável (F4SD) que tem como agenda melhorar a informação e o debate que motive outras instituições a participarem e a contribuírem para que se alargue e se aprofunde em Moçambique capacidades para promover um desenvolvimento mais justo, inclusivo e sustentável;
A AMOMIF está a trabalhar com vários parceiros, para a disponibilização de linhas de financiamento adequadas para que os seus membros estejam mais capitalizados e capazes de fornecer serviços financeiros com impacto nos micronegócios. Uma dessas linhas – a Microfin Resiliente – disponibilizada em parceria com a Gapi já está disponível;
Com vista ao reforço da cooperação entre IMFs e FinTechs, as direções das duas associações estão a preparar um projecto de desenvolvimento de soluções digitais para a modernização e expansão de serviços de microfinanças.
Em resposta ao desafio da NFNV, a AMOMIF participa no consórcio que hoje se pretende constituir para promover a inclusão financeira e através dele mobilizarem-se recursos.
6. Conclusão
A AMOMIF defende e propõe que o Governo, assim como os parceiros de assistência ao desenvolvimento considerem a necessidade e oportunidade de um modelo de intervenção assente em parcerias institucionais entre entidades cuja experiência e implantação nacional assegure maior eficácia e eficiência na aplicação de recursos para a expansão de serviços financeiros.
Nos debates em curso para preparar a 4ª Conferência Internacional de Financiamento ao desenvolvimento tem-se evidenciado que a prática de entidades paraestatais ou braços das agências de cooperação bilateral desenharem e pretenderem implementar através das suas unidades projectos de desenvolvimento locais é ineficaz e ineficiente.
É urgente desestatizar e descolonizar a assistência ao desenvolvimento. Moçambique já tem instituições privadas e da sociedade civil capazes para conceber e promover o desenvolvimento sustentável.